quinta-feira, outubro 25, 2007

Prova irrefutável

De que toda mulher é escrota e todo homem é babaca.

quarta-feira, outubro 24, 2007

De Souza

Sempre tento desviar das epifanias pulguentas que marejam os olhos daqueles que romantizam cada vírgula do dia, na esperança que a brevidade do lume divino dê um brilhinho à ruminação do ir e vir quotidiano (ou, no mínimo, um post pro blog). Mas hoje, dia molhado de Rebouças fechado, confesso ter sentido o peso da hora perdida no metrô (em viagem que, de ônibus, normalmente não passaria de 20 minutos) flutuar sobre minha cabeça quando o garoto ao meu lado - uniforme azul marinho, cabelo bem penteado, não mais que 12 anos - gargalhou alto lendo uma revistinha do Cascão. Mantive os olhos no livro para não intimida-lo, e com o ouvido esquerdo o observei até chegar à minha estação.

segunda-feira, outubro 22, 2007

Top 5 da semana

01- Millennium Mambo (Qianxi manbo) – Hou Hsiao-hsien – Há um tempo escrevi sobre como “Inbetween days” é a única música que eu poderia apontar com justeza como a melhor da história. Acho que se me pedissem para escolher o meu plano favorito da história do cinema, eu provavelmente elegeria o de abertura de "Millennium Mambo". Existe ali uma combinação muito rara de evidências de inspiração – as luzes da passarela, as jogadas de cabelo de Shu Qi, a narradora que comenta seu próprio passado, o slow motion, o bate-estaca de Lim Giong, a descida da escada – que me ganham como pouquíssimos momentos no cinema já me ganharam. Rever “Millennium Mambo”, meu filme favorito de Hou, é ponto alto de qualquer semana.

02- Flor de Equinócio (Higanbana) – Yasujiro Ozu – “Flor de Equinócio” é o primeiro filme em cores feito por Yasujiro Ozu, e conta a história de uma família que prepara o casamento de uma das filhas. Na fase final de sua carreira, Ozu fez uma vários filmes que abordavam essa mesma temática, com dramas sempre muito parecidos. Talvez “Flor de Equinócio” não seja o melhor deles – difícil competir com “Pai e filha”, “Também fomos felizes” ou “A rotina tem seu encanto” – mas possui as mais belas naturezas mortas já filmadas pelo diretor.

03- Down by Law – Jim Jarmusch – É interessante como o conto-de-fadas de Jarmusch só se realiza pro imigrante, e como os outros dois seguem, separados, na deambulação. Existe muito a se dizer sobre “Down by Law”, e entre as coisas que mais me agradam no cinema de Jarmusch está a inversão de quais seriam os tempos mortos de uma estória. Não é nada de novo – nem foi quando ele começou a filmar – mas é um olhar sobre o cinema que me interessa muito, e que Jarmusch faz muito bem.

04- “O prazer que ele demonstrava ao ouvir música, se bem que não fosse aquele êxtase encantado que pertencia apenas a ela, tornava-se precioso em contraste com a horrível insensibilidade dos outros, e Marianne era razoável o bastante para reconhecer que um homem com trinta e cinco anos podia ainda ter sentimentos profundos e admirar coisas lindas a ponto de se emocionar. Ela sentia-se perfeitamente disposta a fazer todo tipo de concessão que o senso de humanidade conferia à idade avançada do coronel” – trecho de “Razão e sensibilidade” (Reason and sensibility), de Jane Austen.

05- Branca de Neve - João César Monteiro – À expressividade de uma tela preta quando toda e qualquer imagem parece não mais capaz de dar conta.

domingo, outubro 21, 2007

Uma pequena revisão

1- Ontem acordei com "Here we go", do Shelter, na cabeça. Creepy.

2- No fotolog do Driving Music comecei a publicar uma série de fotos que eu e Clarissa temos produzido a partir das letras das canções da demo. Cada verso ganha uma transcriação visual livre, e a cada dia (ou quase) uma delas é publicada. A experiência tem sido bastante
estimulante, e acho que coisas bacanas podem sair dali. Fiquem de olho. Se quiserem, claro.

3- Se as listas de fim de ano servem para alguma coisa, é para sofrerem constantes revisões. Embora ainda esteja de acordo com os filmes que escolhi (e continue sem ter visto coisas essencias que poderiam acabar por ali), estou sempre (re)descobrindo discos que mereciam ter figurado entre os melhores de 2006. Seguem cinco razões pelas quais meu top 10 deveria ter sido, na verdade, um top 15.

Josh Rouse - Subtítulo

Há alguns meses recebi um email de meu amigo Jorgim me recomendando o disco Nashville, de um sujeito chamado Josh Rouse. "Ele canta sobre ruas, postes... todos os seus temas", dizia Jorgim. Nada longe da verdade. De lá pra cá, mergulhei na discografia de Rouse a ponto de
coloca-lo no topo de minha parada do Last.FM (passando Wilco, Feist, Bruce Springsteen, Ryan Adams e todos os meus outros favoritos). Embora Rouse, como Ben Lee, às vezes pareça meio retardado em sua entrega incondicional à pureza ("Life", que fecha Nashville, é um bom exemplo), ele é compositor mais consistente que qualquer um dos Bens, e seus discos são agradáveis como poucos nos dias de hoje. Nashville continua sua obra-prima, mas Subtítulo talvez seja seu segundo melhor disco. Se o email de Jorgim houvesse despertado meu interesse poucos meses antes, canções como "The man who doesn't know how to smile", "Summertime", "His majesty rides" e "Givin' it up" não só garantiriam um lugar de Rouse entre os melhores do ano; o colocariam, de fato, bem perto do trono.

Amy Winehouse - Back to black

Às vezes o hype faz algum sentido. Ninguém aguenta mais essa cafonice de reabilitação, de dente caindo e de dar idéia pra Pitty pôr laquê no cabelo e gravar disco de jazz; o que importa é que, ao contrário de Frank (que acho fraco, fraco), Black to Black tem músicas boas pra caramba, e que o timbre de Amy Winehouse deu uma necessária arejada na música pop atual. Mas quando alguém lança disco em dezembro, a culpa da ausência deixa de ser de quem faz a lista e passa para quem não se programou para conseguir lugar nela em tempo.

Maritime - We, the vehicles

Gosto muito de Glass Floor, primeiro disco da banda formada por Davey von Bohlen após o fim do Promise Ring (banda que, a meu ver, só se tornou merecedora da adoração que sempre lhe perseguiu com o belíssimo, e subestimado, disco final, Wood/Water). Quando ouvi We, the vehicles achei que algo se perdera na mudança de rumo de quase-Belle & Sebastian para quase-Coldplay. Deixei o disco de lado por um bom tempo e, quando voltei a ele, a aproximação com Coldplay me pareceu completamente amalucada, e percebi, ali, um disco até melhor que Glass Floor. We, the vehicles é menos afetado, tem cara mais própria e, o que importa, traz canções melhores. Como eles prometem um disco novo ainda para 2007, sigo com chance de me redimir. Isso, claro, se não achar que ele mais parece ser o disco novo do Coldplay.

I'm from Barcelona - Let me introduce my friends

Cheguei a mencionar o disco do I'm from Barcelona quando escrevi sobre o Belle & Sebastian. Faltou, porém, tempo para o disco assentar. Let me introduce my friends é divertidíssimo de se ouvir e começa com uma sequência de fôlego impressionante ("Oversleeping", "Collection of Stamps", "We're from Barcelona" e "Treehouse"). Além disso tem muito, muito glockenspil, tecladinhos, cornetas e tudo de mais bacana que o rock às vezes deixa de lado. Como na minha cabeça existe a categoria "banda de galerão" (que inclui o próprio Belle & Sebastian, Broken Social Scene, Arcade Fire, Lambchop, Polyphonice Spree, etc), é justo dizer que o I'm from Barcelona é quem melhor se saiu nesse nicho. Não só por compor ótimas canções, mas, principalmente, por conseguir manter 29 pessoas em uma banda, e fazer isso parecer apenas parcialmente ridiculo.

Josh Ritter - The Animal Years

Se Ben Kweller me fez prestar maior atenção em outros Bens, é hora de Josh Rouse atrair olhos para sua classe. Josh Ritter não está muito distante dessa leva de singer/songwriters que tanto me agrada; parece, porém, gostar mais de Wilco e Bob Dylan que qualquer um deles, e, com isso, foge dos momentos meio constrangedores que pontuam as carreiras de seus colegas. Se ele nunca erra totalmente o alvo (e o último disco do Ben Lee é um bom manual de como se atirar no próprio pé e condenar boas canções errando a mira em um verso), as letras de Ritter caminham em terreno seguro demais para grandes tacadas. Ainda assim, The Animal Years é um dos melhores discos de country/folk lançado nos últimos anos, e canções como "Wolves", "Girl in the war" e "Lillian, Egypt" colocam Ritter entre os compositores atuais que merecem acompanhamento dos mais entusiasmados.

terça-feira, outubro 16, 2007

Top 5 da semana + 1 convite

01 - Don't miss you at all - Norah Jones (canção) - Não sei se escolhi essa canção essa semana por a neve do primeiro verso me lembrar de "Christmas song", do Nat King Cole (música que dá o balanço a belos planos do "2046"), mas toda vez que ouço os dois primeiros discos da Norah Jones entendo perfeitamente porque o Wong Kar-wai cismou de tê-la como atriz no seu primeiro projeto norte-americano. Nesses dois discos, ao menos, Norah Jones chega, canção após canção, à beleza sem atalhos, à beleza aparentemente não racionalizada... coisa que só consegui encontrar paralelo na enxurrada de epifanias que são os cine-diários do Jonas Mekas. É uma beleza tão simples, tão bruta, que dá um pouco de vontade de chorar e sair por aí carregando essa tristeza boa que algumas coisas bonitas criam na gente.

02 - E la nave va - Federico Fellini - Pra mim não existe coisa mais bonita no cinema do Fellini do que o balé mesmo, a coreografia dos corpos (mortos, como bem diria Deleuze), o olhar pra câmera, o desfile. É um dado que conecta vários dos meus filmes favoritos (penso aqui em filmes que vão de "Carrie, a estranha" a "Beau travail") e que em "La nave va" me parece especialmente inspirado.

03 - Prazeres Desconhecidos (Ren xiao yao) - Jia Zhang-ke - Um pouco do que disse sobre o Fellini se aplica, mais discretamente (mas com o mesmo vigor), também ao cinema do Jia Zhang-ke. As cenas com o personagem que fica cantando ópera na rua, em "Unknown Pleasures", seria um bom exemplo.

04 - Bruce Springsteen - Magic (álbum) - Só ouvi uma vez e me pareceu muito bom. Lançamento de disco novo do Bruce é sempre algo a se comemorar.

05 - Espionagem na rede (demonlover) - Olivier Assayas

* * *

Todo mês ensaio colocar, aqui, uma nota sobre o CinePUC, mas sempre acabo me perdendo nas datas. Há quase três anos organizo as sessões semanais do CinePUC junto com o Juliano, passando filmes de nem sempre fácil acesso e, mais importante, conversando sobre eles após as sessões. Sempre que possível, convidamos alguém interessante para participar do debate conosco, ampliando um pouco o escopo das conversas.

A sessão que acontece hoje, às 20h, na sala k102 da PUC-Rio é bastante especial. Exibiremos o belíssimo "Recordações da Casa Amarela", na segunda sessão do mês dedicado ao realizador português João César Monteiro. São raríssimas as chances de ver a obra de Monteiro no Brasil (e estamos exibindo cópias em dvd restauradas pela Cinemateca Portuguesa, com legendas - muitas vezes necessárias - em português), e hoje teremos a presença especialíssima do professor Hernani Heffner como convidado no debate. Hernani é das poucas pessoas que sinto vontade de ouvir por horas a fio, falando sobre o que lhe ocorrer. Ouvi-lo falar sobre um filme que adora, porém, se torna ainda mais especial. Lembro das memoráveis aulas que Hernani deu sobre alguns de seus filmes favoritos - "A viagem de Chihiro", "Eu nasci, mas...", "Viagem à Itália", "O grande momento" - e de como, a cada palavra do mestre, sentia aqueles filmes se acomodando, também, entre os meus favoritos. Poder conversar com ele sobre uma obra-prima como "Recordações da Casa Amarela" tem tudo para ser momento histórico. Quem tiver o bom senso de comparacer, verá. As sessões são sempre gratuitas. Será um prazer tê-los por lá.

sábado, outubro 13, 2007

Festival do Rio – Dia 14 e repescagem

DIA 14

I’m not there – Todd Haynes




Existe uma armadilha inerente a processos de reconstituição biográfica: como ordenar uma vida essencialmente caótica sem assassinar as ambigüidades? Qual estória deve ser tornada história? O que fazer quando o biografado, como qualquer pessoa, se mostra por demais contraditório para ser um personagem crível na dramaturgia mais tradicional? Não seria esse ato de criação de personagem – a partir da realidade ou buscando a realidade – o problema primeiro da ficção? O que fazer quando percebemos que a ficção parece, por motivos óbvios e absolutamente naturais, simplesmente não ser capaz de dar conta? É possível confinar a biografia de alguém a amarras narrativas sem, com isso, mutilar tudo aquilo que torna a vida daquela pessoa digna de maior interesse? Não seria todo processo biográfico necessariamente redutor? Por outro lado, não estaríamos, todos e o tempo todo, reduzindo o outro para tentar compreende-lo?

Diversos realizadores já se embrenharam na selva da vida alheia para tentar extrair dali algum sentido. Boa parte deles – “Johnny & June”, de James Mangold, vem imediatamente à cabeça – opta por ignorar os agentes complicadores para construir, a partir dessa simplificação, uma trajetória de pícaro, uma narrativa do herói clássico. Somente os heróis seriam dignos da história, então a solução é fazer de todo biografado um herói. “I’m not there”, último filme de Todd Haynes, é uma suposta biografia de Bob Dylan. Suposta porque, logo nos créditos iniciais, Haynes demarca seu terreno: baseado nas muitas vidas de Bob Dylan, diz a legenda. Ao longo de “I’m not there”, uma imagem (nunca mostrada) não me saía da cabeça: Todd Haynes faz um filme sobre uma pedra atirada em uma vidraça. Bob Dylan seria a pedra, e o filme de Haynes não seria tanto sobre a pedra, mas sobre os cacos do vidro partido.

Das muitas vidas de Bob Dylan, nenhuma delas ganha seu nome. Faz-se um filme sobre alguém que inventou seu próprio nome, seu próprio passado. “I’m not there” é, antes de qualquer coisa, um filme feito a partir de um dos mais influentes criadores de ficção do século XX (da história, diria). Em vez de absorver a realidade pela ficção – como é comum nas biografias – Haynes usa a ficção para absorver outras ficções, pois seu biografado fez de sua vida um espaço-tempo para a criação ficcional (processo semelhante, embora mais radical, ao adotado por Milos Forman em “O mundo de Andy”). Em “I’m not there”, Bob Dylan está tão presente quanto ausente: se o próprio título do filme sugere a ausência, as estórias filmadas por Haynes conferem a Dylan uma deística onipresença; quem não está em lugar algum, está, naturalmente, em todo lugar. O maravilhoso está na impossibilidade de sua apreensão, embora sua presença seja sempre sentida e reconhecida. A pedra já varou a vidraça; restam, agora, os cacos.

O primeiro plano de “I’m not there” já diz muito de sua intenção enquanto registro: em câmera subjetiva, caminhamos pelo backstage e subimos ao palco onde uma banda (e toda uma platéia) nos espera. Embora a câmera tome o ponto de vista de um dos personagens, enxergamos pelo preto e branco granulado que imediatamente remete a “Don’t look back”, documentário sobre Bob Dylan realizado em 1967 por D.A. Pennebaker. Como se aproximar de Bob Dylan sem a granulação, sem o preto e branco? Como pensar seu olhar sobre o mundo sem passar pelo olhar que o mundo tem sobre ele? Como alcançar o artista driblando os filtros auto-impostos pela sua própria imagem ao longo dos anos? Como fazer uma biografia a partir de imagens que constituirão uma nova imagem? Como criar fantasmas a partir de fantasmas? Se “I’m not there” é um filme sobre as muitas vidas de Bob Dylan, é também um filme sobre as impossibilidades (e, logo, sobre as possibilidades) da imagem cinematográfica em si. A preocupação que já aflorava em “À prova de morte”, “Planeta Terror” e na imagem-fantasma de “A floresta dos lamentos” toma também o filme de Todd Haynes: o cinema trabalha, sobretudo, com um imaginário imagético criado a partir de impressões físicas (inevitável lembrar de toda a teoria de percepção cinematográfica de Arnheim), e é preciso trabalhar a partir dessas questões. Se seu filme nasce a partir da impossibilidade de um certo registro, é preciso descobrir qual registro pode ser feito. É preciso – como Carl Dreyer ou John Ford – aprender a filmar a onipresença.

“I’m not there” se preocupa, principalmente, com os efeitos da pedrada chamada Bob Dylan. Temos ali alguns personagens mais próximos do Dylan que conhecemos – Jack Rollins (Christian Bale) e Jude Quinn (Cate Blanchett) revivem momentos famosos da vida do artista, enquanto Robbie (Heath Ledger) é um ator que interpreta Jack Rollins no cinema. A essa encruzilhada de camadas narrativas (o ator que interpreta um ator que interpreta um personagem que interpreta Bob Dylan), é somado um dos mais belos processos de decomposição artística já feitos pelo cinema: paralelamente às narrativas dos que representam Bob Dylan, correm as estórias de Woody Guthrie (Marcus Carl Franklin) – um garoto negro de talento musical nato, que canta o sofrimento da Depressão enquanto vai visitar seu ídolo, o Woody Guthrie que conhecemos, no hospital (como fez Dylan) – Arthur Rimbaud (Ben Whishaw) - poeta marginal que tem seu projeto artístico questionado em uma espécie de interrogatório policial - e Billy The Kid (Richard Gere), uma espécie de yojimbo, de estranho sem nome, personagem de western (referência ao filme de Peckinpah com trilha composta por Dylan) que troca de nome à medida que muda de cidade. Esses três personagens não só sintetizam valores que a narrativa atribui a Bob Dylan, mas o fatiam filosoficamente. A multiplicidade do artista é mais que respeitada; é encarada enquanto tal, e nisso torna-se o centro de interesse de Todd Haynes.

Tenho para mim que o primeiro passo de todo artista consiste em aprender a ser um bom ladrão. Como no essencial “Pickpocket”, de Robert Bresson, existe nesse primeiro estágio um misto de coragem e encantamento nos olhos do ladrão que observa seu objeto de desejo não para possuí-lo, somente, mas para dominar o trajeto até ele. O artista olha para as obras que admira com a intenção de decifra-la, de reproduzi-la, de conquista-la, de torna-la sua. Com a intenção de aprender os caminhos que o levam ao arrebatamento. Compõe músicas roubando frases de seus cantores favoritos, escreve um romance colando parágrafos de outros autores, faz um filme mimetizando seqüências inteiras na esperança de apreender o indizível, a ausente onipresença que percebia nas obras que sempre lhe encantaram. Em dado momento de “I’m not there”, uma senhora aconselha o jovem Woody Guthrie a abandonar o universo de suas referências para cantar sobre as questões do seu próprio tempo. É o momento em que o jovem ladrão percebe que os mesmos caminhos não necessariamente levam aos mesmos lugares, e compreende o roubo como um primeiro passo no exercício de abstração que é alcançar a mágica a partir do nada, a partir de um lugar que é só seu. Todd Haynes, portanto, não filma o Dylan linear, físico, o corpo que apodrece ao longo do tempo (e o fato de “I’m not there” começar com a morte do cantor é evidência clara disso). Filma o artista, não o corpo. Filma Dylan decomposto em idéias, idéias de tempo algum que seguem transformando o próprio tempo. Pois quem não canta sobre tempo algum, acaba cantando sobre todo o tempo.

REPESCAGEM

Não toque no machado (Ne touchez pas la hache) - Jacques Rivette



Dos filmes que ficaram para a repescagem, o único que realmente me pareceu essencial (dado o cansaço pelas duas semanas de festival pós-trabalho) foi “Não toque no machado”, filme de Jacques Rivette que só chegou nos últimos dias, e acabou tendo apenas uma sessão oficial (à tarde – para mim, inacessível) programada. Assim como falei de Chabrol, conheço pouco da filmografia de Rivette; gosto muito, porém, do que vi. Nenhuma surpresa, portanto, que sua adaptação do texto de Honoré de Balzac viesse fechar o festival em alta nota.

“Não toque no machado” conta a estória de Armand de Montriveau (Guillaume Depardieu), um general francês que comanda uma missão de restauração do Rei Ferdinando VII ao trono. Esse pano de fundo histórico, porém, esconde uma batalha pessoal de Armand: reencontrar Thérèse (Jeanne Balibar), novo nome adotado por Antoinette de Navarreins, uma antiga amante que, logo descobrimos, tornara-se freira em um convento espanhol. O mal-sucedido reencontro – que acontece, mas é logo interrompido pela própria freira – é uma primeira evidência do jogo de dominação que o longo flashback do filme revelará ter guiado o relacionamento de Armand e Antoinette.

O que parece interessar Rivette, porém, é como os protagonistas lidam com as constantes inversões da personalidade dominante do relacionamento. Em um primeiro encontro, Antoinette se aproxima de Armand, e demanda que ele lhe faça visitas noturnas diárias. O interesse dela, porém, é desviado por sua posição social (ela é esposa de um duque), e aquilo que começa como uma clara manifestação de desejo se torna, logo, terreno para um jogo de personalidade e posições sociais. Uma vez que Armand decide recuperar sua dignidade e não mais cortejar Antoinette, é vez de ela se sentir perdida sem a retribuição de seu interesse e de, então, tentar desesperadamente reconquistar o interesse de Armand.

Observando amantes que se matam está a elegantíssima câmera de Rivette, que nos conduz pelo contrastado ambiente de exuberância (com luzes altas demais para não denotarem a construção cênica) e baixeza dos jogos sociais interpretados por dois atores impressionantes (com duplo sentido). É com esse interesse distante e com alguma ironia (as cartelas; toque de gênio que fazem de “Não toque o machado” muito mais que um simples melodrama de época – coisa que, para não sair do festival, pode ser dita de “Uma velha amante”) que Rivette realiza mais um belo filme, e sobe para as primeiras posições de minha lista de cineastas a estudar mais cuidadosamente.

sábado, outubro 06, 2007

Festival do Rio – Dias 11 e 13

Pulei a terça-feira para comemorar os 10 anos de vida ao lado de minha Clarissa. Poder celebrar esse dia com ela foi viver o melhor filme que o festival nunca poderia passar. Agora, basta de intimidade.

DIA 11

Paranoid Park - Gus Van Sant




É padrão bastante recorrente no mundo do rock que bandas que sentem ter dominado um determinado gênero (e, normalmente, tenham sido bem sucedidas nele) alcem vôos tortuosos em discos movidos pela dissonância, pela necessidade de provar versatilidade e amadurecimento musical (ambas coisas bastante discutíveis, mas parto, aqui, do que me parece o ponto de vista desses artistas nesses momentos específicos). Podemos pegar os exemplos mais diversos; de Face to Face a Radiohead, de Yellowcard a Get Up Kids, de Cardigans a Saves the Day - é extremamente comum vermos compositores bem sucedidos (em especial, na música pop) abandonarem a base evidente de suas carreiras por essa auto-afirmação artística (por vezes sinal de liberdade; por outras, evidência de que a “maturidade” é conceito tão definido e previsível quanto o seu oposto). Mais comum ainda é que esses discos mais “autorais” provoquem uma cisão bastante clara com os antigos fãs, e que os mesmos artistas que haviam promovido essa mudança sintam a necessidade (e não discuto motivações) de retornar àquilo que os fez populares. Em alguns casos, esse suposto retorno vem com sabor de ressaca, e parece apenas mimetizar trejeitos do passado com a esperança de recuperar algo perdido no processo. O acesso de liberdade se torna, portanto, raiz de uma irremediável perda. Um velho em roupas de jovem. A morte da inocência. Em outros casos (e são esses que mais me interessam), o retorno se completa melhor etimologicamente, e vem temperado pelo aprendizado proporcionado pela guinada anterior. A vida como círculo, não como linha reta. Um tempo canino, diria. Uma vez que não exista mais o que provar a si mesmo, a liberdade de escrever boas canções retorna com uma força impressionante. Saem daí, comumente, os melhores trabalhos das carreiras desses artistas.

Em torta analogia, esse me parece o caso de Gus Van Sant. Após mergulhar de olhos bem abertos na frieza encantada do cinema de dispositivo da trilogia “Gerry”, “Elefante” e “Os últimos dias”, o que haveria ainda a ser provado? Uma vez que a exploração dos cruzamentos possíveis entre tempo e espaço tenha sido praticamente esgotada pelo diretor, como continuar? Que disco fazer? Gus Van Sant fez “Paranoid Park”; posivelmente, sua obra-prima.

Havia cortado “Paranoid Park” de minha lista de intenções ao saber que o filme seria exibido no festival em cópia digital. Conhecendo as condições de projeção do circuito digital carioca, preferi aguardar para ver o sempre estupendo trabalho fotográfico de Chris Doyle (provavelmente o melhor fotógrafo em atividade no mundo, só encontrando paralelo em outros gênios da luz como Roger Deakins e Lee Ping Bing) em condições mais apropriadas, quando o filme fosse lançado (pelo que sei, já está comprado para exibição) com cópias em 35 mm. Até que um acidente com a cópia digital impediu sua exibição, e a distribuidora enviou para o Rio uma bela cópia em película (e, reza a lenda, a circulação comercial, sim, será feita somente em digital). Essa mudança de planos obrigou-me a, com muito gosto, alterar meu roteiro e abrir um espaço para, a tempo, pegar a última exibição de “Paranoid Park” no festival. Ah, as linhas tortas!

Muitos dos dispositivos que marcavam a trilogia anterior (os longos planos de caminhada, a manipulação do tempo narrativo, o estado flutuante da mise-en-scène) estão presentes em “Paranoid Park”. A grande diferença, porém, é que se em “Elefante” – por exemplo – a dramaturgia nascia a partir dos dispositivos, em “Paranoid Park” são eles que estão a serviço da dramaturgia. Depois de tanto explorar as esquinas dissonantes da composição, nada mais reconfortante do que simplesmente sentar e escrever canções pop novamente, certo? Em termos, sim. “Paranoid Park” é tão interessante estética e dramaturgicamente quanto os filmes imediatamente anteriores de Van Sant, com a diferença de que sua fruição imediata me parece muito mais suave (ainda encontro pedaços de “Elefante” entalados em minha garganta sempre que sinto sabor semelhante em outras obras). O último filme de Gus Van Sant é tão próximo de “Os últimos dias” quanto de “Drugstore Cowboys”, e ao mesmo tempo parece trazer a seu cinema elementos absolutamente novos. Filme síntese como poucos o são.

Paranoid Park é o nome de um mítico skate parque em Nova York, uma espécie de Moby Dick para jovens skatistas. Construído e habitado por tipos tidos como marginais, Paranoid Park é o misto perfeito de sonho e pesadelo de garotos de classe média. Uma espécie de ritual de iniciação, mas também a evidência da entrada em um mundo menos seguro, menos previsível. “Ninguém nunca está preparado para o Paranoid Park”, diz um dos garotos do filme. Tomado pela curiosidade que o medo aguça, Alex dribla todas as suas relações (família, namorada, amigos e, posteriormente, a lei) em nome de uma primeira noite no Paranoid Park. Não vemos Alex andando de skate; sabemos que seu interesse no parque é mais mítico do que prático. É preciso estar ali. Tornar-se um deles. Passar da infância para a vida adulta. Passagem importante mas que, como os acidentados retornos das bandas do primeiro parágrafo, sempre ocasionam a perda de alguma coisa. Alex é aceito pelos locais do Paranoid Park, mas, no processo (e, definitivamente, é assim que o filme encara o acontecimento), mata uma pessoa (muito propriamente representada no filme por um segurança – figura bastante clara de autoridade, de limites).

Alex passa a ser procurado em sua escola (signo também bastante claro das amarras da infância) por um detetive que investiga o crime. Para compreender seu trauma, segue o conselho de uma amiga e escreve sobre o que aconteceu. Não conta seu segredo a ninguém; apenas escreve sobre ele. Não basta viver, é preciso contar, reinterpretar, reorganizar. É o texto de Alex que nos guia. Não seria ele, também, o filme que Gus Van Sant vem fazendo desde sempre? Não estaria o cinema de Gus Van Sant ancorado na necessidade de dar conta dessa transição da infância para a vida adulta? Não seria Gus Van Sant (e, ora, todos nós) irremediavelmente marcado pelo rompimento dos dogmas da infância (se aproximando muito, curiosamente, do universo de J.D. Salinger), e seu cinema não mais que a tentativa de extrair algum sentido desse choque pela ficcionalização? Com “Paranoid Park”, o diretor parece dar mais um passo nesse sentido. Poucos artistas olharam para o universo jovem com a generosidade e o interesse de Gus Van Sant. A tentativa de perceber o que se perde na adolescência (e seu cinema também fala muito sobre o que se ganha) pode estar fadada ao fracasso, mas Van Sant – como as expressivas correções de diafragma que Doyle explora maravilhosamente no filme – nos lembra que é preciso sempre reajustar o olho para olha-la melhor. Em algum momento, talvez enxerguemos, de fato, alguma coisa nova, e tudo passe a fazer um pouco mais de sentido.

DIA 13

Go Go Tales - Abel Ferrara



Todo ano me percebo inabalado por uma obra que parece ter tocado grande parte da crítica que mais me interessa. Ano passado foi a exibição de “O hospedeiro” no Festival do Rio (o filme foi exibido comercialmente este ano, e certamente acabará em várias listas dos melhores de 2007), de Bong Joon-ho, que me chegou de maneira diferente. Onde muitos viam um sopro de vida no cinema de gênero eu percebia uma certa falta de fé; nos momentos em que muitos riam de uma sátira política supostamente bem elaborada, sentia um nariz em pé, um deboche meio feio e ineficiente. Este ano, “Go Go Tales” acabou sendo a minha ilha de desapontamento.

O último filme de Abel Ferrara se parece, em alguns sentidos, com “A última noite”, filme de Robert Altman que reevoquei ao falar de “Cristóvão Colombo – O Enigma”. Enquanto os travellings de “A última noite” nos conduziam por um fascinante balé dos mortos, em “Go Go Tales” esses mesmos travellings nos revelam carnes bastante vivas. Se no filme de Altman a Prairie Home Companion encarnava a resignação diante da morte, no filme de Ferrara a boate Paradise insiste não deixar que fechem o caixão. O fatídico dia que a câmera decide mostrar traz uma sucessão de infortúnios: Ray Ruby (o dono do clube, interpretado pelo sempre interessante Willem Dafoe) não tem dinheiro para pagar suas dançarinas, seu sócio está decidido a retirar seu dinheiro do clube, a proprietária do imóvel diz não mais aceitar o atraso no aluguel. É nesse mesmo dia, porém, que Ruby ganha 18 milhões em uma trapaça na loteria, comprando um número absurdo de bilhetes. O bilhete premiado, porém, desapareceu.

“Go Go Tales” circula nessa alegoria do empresário de show business como o apostador que compra o maior número de bilhetes possível, trapaceia para ganhar na loteria e, como vemos ao final, continua não tendo dinheiro suficiente para tirar o pé da lama. De certa forma, Ray Ruby é representação viva do empresário, do produtor, da stripper que consegue produzir seu roteiro dançando para um figurão, da indústria do disco que trabalha com margem de 90% de fracasso, esperando que os 10% de sucesso cubram seus gastos.

O problema é que, depois de dadas as cartas, o filme vai ficando meio aborrecido, o desenrolar das situações nunca foge do previsível, e a curiosidade em relação àquele universo logo se transforma em tédio. Tirando alguns bons personagens – cozinheiro de hot dogs orgânicos – e um par de seqüências mais interessantes, o filme de Ferrara me fez pensar em todas as outras coisas que deixei de ver para estar naquela sessão. Sentir frieza de um filme que parece tratar sobre a pulsação da carne me parece, no mínimo, bem estranho. Sensação nunca bem-vinda, mas ainda mais angustiante quando o número de coisas a se ver é muito maior do que o tempo que temos para dividir entre elas.

quinta-feira, outubro 04, 2007

Festival do Rio – Dias 9 e 10

DIA 9

Mulher na praia (Haebyonui yoin) – Hong Sang-soo




Certos filmes me ganham antes mesmo que uma primeira imagem filmada chegue à tela. Há pouco tempo, conheci uma fatiazinha do cinema de Hong Sang-soo assistindo “Turning Gate”, de 2002. Logo depois dos créditos de apresentação, uma cartela resumia tudo que viria a acontecer na seqüência seguinte. Essas cartelas reapareceriam ao longo de todo o filme, sempre anunciando aquilo que iríamos ver. Mais do que me encantar com a redundância (e todos que já assistiram a “Desencanto”, de David Lean, sabem do poder da redundância enquanto ferramenta dramatúrgica) ou com a previsibilidade voluntária das cartelas (efeito semelhante ao que o título de “Um condenado à morte escapou”, de Robert Bresson, tem sobre o filme em si), fiquei impressionado com um detalhe visual dessas cartelas: em vez do popular texto branco sobre fundo preto, em “Turning Gate” as letras brancas eram acolhidas por um fundo de efusivo verde limão. “Alguém que tem a coragem de começar um filme com uma cartela verde limão deve ter muita certeza do que faz”, pensei.

“Mulher na praia” marca a estréia de Hong Sang-soo em salas brasileiras. Mesmo em festivais, o diretor sul coreano nunca antes havia passado pelos cinemas brasileiros, e o acesso à sua obra se limitava a rips de internet. Após assistir “Turning Gate”, “Mulher na praia” acabou se tornando um dos filmes que mais ansiava ver nesse festival. E, mais uma vez, Hong Sang-soo me ganha antes dos atores tomarem a tela. Dessa vez, porém, as cartelas de crédito vieram em preto e branco, mas, junto delas, uma bela (quase frívola) melodia era executada ao piano. É com uma peça de música extremamente simples, singela até, que Hong Sang-soo convida o espectador a experimentar seu “Mulher na praia”. Convite perfeito, porque, uma vez seduzido pelo tema, ser arrastado pela leveza do último filme de Hong Sang-soo é ato incrivelmente agradável.

Leveza, de fato. Essa parece ser a única palavra que, talvez, chegue perto de capturar a experiência de se assistir “Mulher na praia”. Existe um prazer em sua lente por captar a vida passando, as pessoas interagindo, se conhecendo, se aproximando, que é muito rara no cinema atual. Um prazer encantado, diria, mas sempre mais interessado no outro do que em seu próprio interesse. Afinal, tanto “Turning Gate” quanto “Mulher na praia” poderiam ser resumidos em uma mesma tagline: rapaz conhece moça. O que sai daí são as conseqüências mais banais desse primeiro esbarrão: amor, sexo, traição, porres, decepções, transformações, repetições. Tudo que acontece no cinema de Hong Sang-soo parece advir dessa pré-disposição por se relacionar e se interessar pelo outro. Não à toa os personagens principais de “Turning Gate” e “Mulher na praia” são pessoas de cinema (um ator, outro diretor): o cinema é sempre pano de fundo para a vida amorosa que toma o primeiro plano. Não seria essa uma das declarações mais poderosas do cinema de Hong Sang-soo? Não deveriam os filmes surgir a partir da vida?

A graça (no sentido literal do termo) do cinema de Hong Sang-soo está justamente nesse gosto pelo observar; nesse interesse por vidas tão banais quanto a de qualquer um. Impressiona muito que esse apreço pela banalidade seja costurado com linhas tão firmes: todo o filme parece um jogo de reflexos, onde cada ação pequena espelha as decisões “maiores” tomadas pelo personagem. Nesse sentido, é especialmente ilustrativo o paralelo entre a fobia que o personagem principal tem de cachorros e o receio que sente em torno das mulheres (e o músculo que rompe “por falta de uso” quando ele corre na praia com sua nova namorada e um cachorro que cenas antes lhe fizera fugir). Assim como em Apichatpong Weerasethakul ou mesmo em Wong Kar-wai (existe filme tão apaixonado pela leveza quanto seu “Amores expressos”?), Hong Sang-soo impressiona por gerar obras-primas sem esforço aparente, extraindo uma quantidade impressionante de significados de momentos aparentemente banais. Em seu cinema, qualquer coisa parece ser capaz de conter o mundo: um bate-papo, uma caminhada à beira da praia, um jantar, uma ligação telefônica, uma cerveja. Ou mesmo uma melodia tamborilada ao piano que corre junto aos créditos de abertura.


Planeta Terror (Planet Terror) – Robert Rodriguez




Da mesma maneira que alguns filmes acabaram cortados de minha programação no festival pela contingência, outros antes não previstos acabaram entrando pela definidora conjunção de curiosidade e comodidade. Gosto bastante do cinema de Robert Rodriguez, embora considere seu “Sin City” (última peça de sua filmografia que assisti) bastante limitado. Apesar da curiosidade imediata por seu projeto com Quentin Tarantino, havia decidido aguardar que o filme de Rodriguez entrasse em circuito, para dedicar meu já escasso tempo a filmes que dificilmente serão exibidos fora do Festival. Até que assisti “À prova de morte”, e a curiosidade de conhecer sua cara-metade cresceu exponencialmente. Remanejei alguns filmes de minha agenda e consegui, na noite de sábado, sentar diante de “Planeta Terror”.

Parte do que disse sobre o filme de Quentin Tarantino se mostra, com o filme de Rodriguez, um dos conceitos por trás da série “Grindhouse”: reaparecem, aqui, os riscos na película, a interatividade com o material físico, o filme que queima na projeção (recurso que, confesso, não me parece funcionar depois que Bergman fez “Persona”), o rolo perdido que provoca uma “acidental” elipse. Mais uma vez, está reconhecida aqui a influência desses acidentes no filme visto, e na aura que envolve os filmes que ambos os diretores homenageiam nesse “Grindhouse” (e a intrusão do boom já familiar aos freqüentadores do Estação Ipanema – cinema que não possui janela 1:1.85, e aumenta o teto desses filmes exibindo-os em 1:1.66, fazendo do microfone parte integrante da imagem – se torna, aqui, elemento que corrobora a tese de Rodriguez).

Assinaladas as semelhanças, resta remarcar as claras diferenças entre o cinema de Tarantino e o de Robert Rodriguez. Se “À prova de morte” busca na estilização a possibilidade constante de se criar ícones, não é descabido dizer que “Planeta Terror” estiliza ícones do passado com a intenção de valoriza-los, não exatamente de reinventa-los. Se o excesso de reverência havia traído Rodriguez em “Sin City”, aqui ela é sabiamente dosada pelo senso de humor rasgado do diretor, alcançando um equilíbrio entre o deboche e o respeito pelo gênero que o badalado “O hospedeiro”, de Bong Joon-ho, nunca me pareceu ser capaz. Robert Rodriguez acha os filmes de zumbi hilários, mas ao mesmo tempo tem uma fé inabalável no gênero. Não é por achar graça dos exageros (e exagero é uma palavra importante em “Planeta Terror) permitidos pelo gênero que Robert Rodriguez demonstra não ter fé nesses signos. Muito pelo contrário, é por conhecer intimamente o universo em que quer situar seu filme que Rodriguez se permite tantos exageros, pois sabe que o gênero os comporta, os acolhe.

Se aproveitarmos a configuração de programa-duplo original de “Grindhouse”, é justo dizer que “Planeta Terror” se sai extremamente bem enquanto aperitivo para “À prova de morte”. Se não chega a ser do mesmo nível do filme de Tarantino, a diferença entre eles é proporcional à distância dos dois projetos de cinema. Enquanto Tarantino parte do passado para criar uma nova iconografia para o presente, Rodriguez se satisfaz plenamente adicionando um pouco de sua visão a universos já bastante consolidados. Ainda assim, o faz com habilidade e talento suficientes para colocar “Planeta Terror” junto de suas melhores obras.

DIA 10

Uma velha amante (Une vieille maîtresse) - Catherine Breillat




Não conheço nada da obra anterior de Catherine Breillat. Já tinha lido elogios bastante generosos a “Uma velha amante” na crítica internacional, portanto, quando vi que ele estava escalado para o Festival, tratei de adiciona-lo à minha lista. O fator determinante, porém, foi quando descobri que o filme era protagonizado por Asia Argento, sem dúvida um dos nomes mais interessantes a surgir no cinema recente (tanto como atriz – em “Maria Antonieta”, “Os últimos dias” e “Terra dos mortos”, por exemplo – quando como realizadora – tendo como guia o belo “Maldito coração”).

Muito do que gosto em “Uma velha amante” tem a ver não só com Asia Argento, mas com o trabalho de fotogenia que Catherine Breillat realiza com seus atores (incluo aqui os traços marcantes de Fu'ad Ait Aattou e Roxane Mesquida). Em filme onde a sensualidade é tema principal, a opção por conferir tamanha força aos rostos dos atores é um interessante recurso narrativo, e é justamente no rosto de Asia Argento que o filme encontra seus melhores momentos. Sim, pois se o filme de Catherine Breillat tem um grande mérito ele está justamente na capacidade de explorar a ambigüidade da figura da atriz, ao mesmo tempo repulsiva e atraente, animalesca e complexa, baixa e refinada, doente mas extremamente viva. Esse conflito de valores da velha amante encontra lar mais que perfeito no rosto de Asia Argento, e sua escalação para o papel é, de fato, preciosa.

Por conta desse trabalho de fotogenia (e, sim, a capacidade de extrair tanto do rosto de uma atriz é crédito a ser dado à diretora), “Uma velha amante” me deixa com o interesse de buscar mais da obra de Catherine Breillat. Embora a ambientação de época e o tom excessivamente convencional da narrativa me pareçam um pouco enfadonhos, a expressividade que Breillat arranca de uma mera oposição de rostos me parece bastante rara no cinema atual. Resta buscar esses elementos em seus filmes passados, esperando que, em algum momento, Breillat se revele mais do que uma nobre retratista.

segunda-feira, outubro 01, 2007

Festival do Rio - Dia 8

Tirei a quinta-feira de folga do festival, então deixo o dia 8 sozinho. Não só porque o filme visto nesse dia merece todas as linhas que eu puder lhe oferecer, mas também porque o 10 tem um ciúme doentio do 9.

DIA 8

Cristóvão Colombo – O enigma – Manoel de Oliveira




Entre eu e meus amigos uso uma designação para certos textos que batizei como “a verticalidade de Nova York”. O título saiu de uma crítica publicada sobre o segundo “Homem Aranha” na ótima Contracampo, onde o autor despendia vários parágrafos falando sobre como o filme era revelador da verticalidade de Nova York. Pelo que me lembro (e não vou reler a crítica agora para não correr o risco de me sentir eticamente obrigado a jogar esse parágrafo pelo ralo – pro bem ou pro mal, jogo a culpa na memória), pouco se falava sobre o filme. Falava-se muito, porém, da tal verticalidade de Nova York. Ela estar ou não presente no filme de Sam Raimi nunca foi a minha questão. O que me dava urticária na tal crítica é que o autor caía na comum arapuca de se deixar levar por uma idéia que surge a partir do filme, e neglicenciava todas as outras questões propostas pelo filme (e, em se tratando de “Homem Aranha 2”, elas são muitas) por estar extremamente orgulhoso desse seu dispositivo. Não acredito que a crítica deva se render às receitas de bolo dos quadradinhos de jornal, tampouco que recortes mais originais não devam ser encorajados na atividade. Acredito, porém, que também já condenei alguns de meus textos a esse mesmo mal, e por isso uso a tal “verticalidade de Nova York” como uma forma de auto-controle. Um freio para quando a vaidade de quem escreve começa a fazer sombra sobre quem assiste filmes, ouve discos, lê livros e, vez por outra, se vê apaixonado por uma outra obra.

E aí me pego entortado pela cadeira do Estação Botafogo 1, vendo esse “Cristóvão Colombo – O enigma”. Na minha cabeça, um pensamento retornava em cada corte: Manoel de Oliveira fez, de fato, um filme sobre a verticalidade de Nova York. Faço, portanto, a única coisa que me parece honesta agora: desvencilho-me das teias (valeu trocadilho!) da verticalidade de Nova York de “Homem Aranha 2” e escrevo sobre a verticalidade de Nova York que o mais novo filme de Oliveira insistiu me mostrar.

“Cristóvão Colombo – O enigma” é uma adaptação de “Cristóvão Colón era Português”, livro que, como deixa bem claro o título, pesquisa as raízes portuguesas do descobridor da América. No filme, acompanhamos três momentos da vida de Manuel Luciano da Silva, um jovem português curioso sobre as raízes do navegador: a sua ida para a América ao lado do irmão; o sucesso de sua carreira médica nos Estados Unidos e seu casamento em Portugal; e uma última busca, ao lado da esposa (e nessa terceira parte é o próprio Manoel de Oliveira quem encarna o personagem), pelos EUA e em Portugal pelas raízes portuguesas de Cristóvão Colón. Ocasionalmente, uma jovem vestida de verde e vermelho e com uma espada em punho acompanha a cena, em aparição muito semelhante à mulher de branco/morte em "A última noite", mas sem interagir verbalmente com os personagens como no filme de Robert Altman. Mas se a personagem do filme de Altman trazia o último suspiro a personagens tradicionais da iconografia norte-americana, no filme de Manoel de Oliveira ela vem apreciar a pesistência do espírito português em um de seus filhos. Essa misteriosa personagem, que observa Manuel em sua busca, é tão passivamente presente nessa jornada quanto Portugal, a terra. A necessidade de Manuel em buscar a história do descobridor é uma necessidade de compreender sua terra e, assim, compreender a si mesmo.

Esse processo de investigação de uma identidade portuguesa ganha tons mais distintos justamente pelo contraste com a terra descoberta: além de Portugal, é a América que serve de segundo lar para o filme, seus personagens e a figura histórica que lhe confere nome. Quando Manuel e seu irmão pisam pela primeira vez em Nova York, uma imediata decepção: um nevoeiro encobre a cidade, e impede que eles vejam os famosos arranha-céus que fazem a paisagem da cidade. Essa primeira oposição de signos se confirmará ao longo de “Cristóvão Colombo”: Portugal é horizontal, enquanto a América é essencialmente vertical. Enquanto a paisagem portuguesa é desvendada por belíssimos movimentos panorâmicos, a paisagem metálica das pontes nova iorquinas não cabem no quadro, e tudo que se vê é uma parte delas, pela janela de um táxi.

Estaria Manoel de Oliveira usando essa oposição de formas como transcrição visual das ambições de dois grandes impérios? Afinal, estamos falando de Portugal à época do tratado de Tordesilhas; Portugal dona de meio mundo, como é ressaltado no próprio filme. Seria a expansão portuguesa de ambições essencialmente horizontais, enquanto a expansão norte-americana é de cunho vertical (basta lembrarmos de toda a corrida espacial durante a guerra fria)? Podemos pensar em ambições horizontais como um interesse pelo plano humano, enquanto as verticais estariam tentando criar uma nova metafísica? Será mera coincidência que o jovem português que é apaixonado pela História de Portugal vá construir sua vida na América?

Todas essas perguntas se tornam constatações na parte final do filme. Entre os planos mais sintéticos de “Cristóvão Colombo – O Enigma”, está uma visita do já idoso Manuel e sua esposa ao monumento em homenagem ao descobridor que enfeita uma praça de Nova York. Filmada em um contra plongé de angulação extrema, a estátua é engolida por dois gigantescos prédios ao fundo. Não seria próprio à América o sonho de construir um presente que pareça capaz de esmagar seu passado, sua história? Cristóvão Colombo chegou à América pelo mar. Hoje - diz Manoel de Oliveira interpretando Manuel - só se pode ver um pedacinho do mar de onde, antigamente, ficava uma torre de observação. Os prédios encerraram o mundo, e para se enxergar o horizonte é preciso praticamente molhar os pés na água salgada. Não é à toa que o retorno de Manuel a Portugal seja feito pelo ar – vemos seu avião aterrissar frente a um letreiro que diz Porto Santo. O nome da cidade, nós sabemos. Mas, curiosamente, é o mesmo letreiro que reaparecerá no último plano do filme, escrito no casco de um barco que corta, horizontalmente, toda a tela do cinema.